A encíclica de João Paulo II, Fides et ratio, sinaliza para a
clássica questão ainda vigente em nossos dias: fé e razão. São indissociáveis?
Coadunam ou se repelem? É vida e morte que se duelam?
Diz-nos o papa já na introdução:
A fé e a razão (fides et ratio)
constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a
contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo de
conhecer a verdade e, em última análise, de O conhecer a Ele, para que,
conhecendo-O e amando-O, possa chegar também à verdade plena sobre si próprio
(cf. Ex 33, 18; Sal 2726, 8-9; 6362, 2-3; Jo 14, 8; 1 Jo 3, 2).
De maneira alguma a fé se interpõe ao avanço da
ciência. Isso, de fato, seria um absurdo e uma grande heresia, pois seria, em
última instancia, uma afronta ao próprio Espírito de Deus que, como dom
e vivificador da vida humana, interpela-o a querer e almejar sempre mais
pelo conhecimento. Ambas, fé e ciência, são possibilidades, de viezes
diferentes, mas que buscam tão somente a verdade. E esta, sem desmerecer uma ou
outra via, faz-se conhecível. A fé é capaz de curar a ciência da prepotência e
esta, por sua vez, impede a superstição que torna a fé im-pensável.
Nos últimos séculos, a contar da
idade média, mais explicitamente, também preconceituamente conhecido como a
Idade das trevas, a Igreja foi sendo confrontada com os conhecimentos
científicos, e, com o advento da tecnologia, ela, em muitos momentos, é
verdade, se enrijeceu e pareceu regredir no seu compromisso amigável em busca
da verdade. Todavia, é preciso sempre de novo recordar-nos de que:
2. A Igreja não é alheia, nem
pode sê-lo, a este caminho de pesquisa. Desde que recebeu, no Mistério Pascal,
o dom da verdade última sobre a vida do homem, ela fez-se peregrina pelas
estradas do mundo, para anunciar que Jesus Cristo é « o caminho, a verdade e a
vida » (Jo 14, 6). De entre os vários serviços que ela deve oferecer à
humanidade, há um cuja responsabilidade lhe cabe de modo absolutamente
peculiar: é a diaconia da verdade. (1) Por um lado, esta missão torna a
comunidade crente participante do esforço comum que a humanidade realiza para
alcançar a verdade, (2) e, por outro, obriga-a a empenhar-se no anúncio das
certezas adquiridas, ciente todavia de que cada verdade alcançada é apenas mais
uma etapa rumo àquela verdade plena que se há--de manifestar na última
revelação de Deus: « Hoje vemos como por um espelho, de maneira confusa, mas
então veremos face a face. Hoje conheço de maneira imperfeita, então conhecerei
exactamente » (1 Cor 13, 12).
Se hoje, século XXI, a Igreja se
sente em muitas áreas ameaçada pelo conhecimento cientifico, ela precisa se
recordar, sempre de novo, desta sua condição explicita de “diaconia da verdade”.
Desse modo, mitigará qualquer pretensão de querer ser Senhora Ab-soluta da
Verdade; de achar-se no patamar último do discurso e da opinião sobre tudo. Esse tempo não existe
mais. Não nos cabe, enquanto crentes, pretender discursar tenazmente sobre o
que nos foge da área do conhecimento. Devemos estar ciosos das descobertas,
interessados pelo avanço tecnológico, mas sempre nos dando o lugar que nos
cabe: o do diálogo responsável, porém crítico, mas ainda assim dialogal. Nossa
parcela de contribuição para com este mundo sempre mais desenvolvido e revolucionalmente dinâmico é de nos
colocarmos nas fileiras da interação, da partilha, do anúncio e da denúncia
pertinente e em prol da vida humana.
17. Não há motivo para existir
concorrência entre a razão e a fé: uma implica a outra, e cada qual tem o seu
espaço próprio de realização. [...] Deus e o homem estão colocados, em seu
respectivo mundo, numa relação única. Em Deus reside a origem de tudo, n`Ele se
encerra a plenitude do mistério, e isto constitui a sua glória; ao homem, pelo contrário,
compete o dever de investigar a verdade com a razão, e nisto está a sua
nobreza. [...] O desejo de conhecer é tão grande e comporta tal dinamismo que o
coração do homem, ao tocar o limite intransponível, suspira pela riqueza
infinita que se encontra para além deste, por intuir que nela está contida a
resposta cabal para toda a questão ainda sem resposta.
A teologia atual, por fim, capacita-nos para que, cônscios de
nossas responsabilidades perante a construção humanística da sociedade, abramo-nos
ao diálogo franco, sincero e fraterno com a ciência. Deixar-nos instruir pela
capacidade inquestionável dos saberes já consolidados e não “demonizarmos” o
que por ora vemos com prudentes ressalvas ou, quem sabe, criticamente
discordamos. O importante, no fim de tudo, é que não falte a sensibilidade
capaz de nos fazer recorda nossa condição primeva e podermos voltar resolutos
em paz para a casa de nossa humanidade, tranqüilos e sóbrios. Estamos Apenas
caminhando... Nada mais.
Claudemar Silva
Crédito da foto: http://www.hec.edu/var/fre/storage/images/media/images/fr/doctorat/ecrire/137904-1-fre-FR/Ecrire.jpg
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