Gosto
do filósofo dinamarquês Kierkegaard. Em sua obra “O Desespero Humano”[1], o
filósofo diz que a morte não é letal para o cristão. Há uma doença mortal que o
cristianismo descobriu, uma miséria que é mais funesta do que todas as outras
doenças: o desespero. Há muita gente, muitos cristãos, no entanto, desesperados,
ainda, por conta da morte. E por certo. Ninguém sabe morrer, pois essa não é
uma daquelas experiências que podemos fazer e acrescer ao nosso “know how”. Não
somos também educados para a morte. Estamos, portanto, irremediavelmente
entregues ao desconhecido. O que não é de todo desfavorável, porque isso prova
que não podemos lançar as rédeas de nossa vontade-de-poder no futuro, sempre
incerto... Aqui aparece aquela sensação de insegurança: vivemos o presente que
se dá e nos escapa, tornando-se passado, enquanto o futuro vai se
descortinando, exigindo de nós espontaneidade, para lidar com a
imprevisibilidade da vida. Se assim é, não é verdade que a morte é a
consciência de nossa ruína apenas, mas é a condição de devolvermos nossa vida à
criatividade. É só assim que podemos, a meu ver, desposar a vida:
despossuindo-a. A nossa “autoridade” sobre a vida, seria da ordem da atenção a
ela (o que requer cuidado) e não do domínio, portanto.
A
reflexão bioética se encontra também com a morte, porque todo ser vivente está
destinado a ela. Dá de pensar a nossa fuga da morte. Ao passo que em nós há uma
pulsão para ela (Freud); e ao mesmo tempo em que somos apresentados diante dela
(pelos jornais, pela mídia eletrônica), somos acompanhados pelo receio de ver
todos os nossos sonhos e projetos fracassados no fim que ela representa.
Gostaríamos
de ter felicidade sem dor e de jamais perder quem amamos, pois também temos
dificuldade para o luto. Numa sociedade como a nossa, desenvolvida
biotecnologicamente, ainda não conseguimos dirimir a dor o quanto poderíamos e
nem tampouco, fugir da morte. Além disso, o fato de sermos também uma cultura
narcisista, empenhada na beleza, no auge do corpo, faz-nos temer o declínio de
todas as nossas funções: as biológicas e produtivas. Ora, isso é um presente
para o mercado do sexo, por um lado, porque ele pode se valer da tensão gerada
pelo desespero e fazer a sexualidade funcionar como válvula de escape,
explorando os desejos e os medos do homem. E desejos e medos andam tão
próximos, quanto a morte e a sexualidade.
É
preciso saber perder. Nesse sentido, é uma arte morrer e perder aqueles que
amamos. Primeiramente, quanto a nós mesmos: é uma arte morrer, pois com a morte
aprendemos qual o segredo final da vida (O silêncio e a solidão da tumba? O
sentido de eternidade?). É uma arte, porque morrer bem consiste exatamente em não procurar a morte, e sim em lutar
pela vida; em amar tudo o que a vida pode ser de bom e prazeroso; e isso, mesmo
diante da doença, que rompe a unidade entre corpo e cogito, mas não quebranta a dignidade. Uma vida que deitou raízes
na terra, abriu-se na copa para o céu[2].
Agora, quanto aos outros: enlutar-se é algo possível só para quem ama. Mas o
outro a quem eu amo é sujeito, é dom, não propriedade minha. Na morte daqueles
que amamos, aprendemos uma dinâmica excruciante do amor: a ausência. O amor é feito
também disso: de nãos, de lacunas, de despedidas, de saudades, de espaços
sempre reservados a quem amamos. A morte também é não, é lacuna, é despedida, é
saudade... Morte e amor tem algo em comum, então: se quando amamos,
experimentamos a ex-centricidade de nosso ego, na morte igualmente.
A
ausência é uma forma de presença e é preciso aprender a suportar o peso do
desamparo, contra toda ilusão. Com a
ausência do outro aprendemos que a vida é graça e a que a presença dos que
estão a nossa volta também. Por isso uma vida atenciosa ao outro é
indispensável, pois só “a alegria da feliz experiência do amor, através da
gratidão, torna-se uma proteção no luto. No momento da perda, a gratidão mantém
a comunhão com as pessoas queridas, deixando livre a pessoa morta.”[3]
Parece
óbvio para mim uma coisa: somos seres-para-além-da-morte. É uma questão de fé.
Mas não de uma fé segura. Trata-se de uma fé sobressaltada pela dúvida... E se
para Kierkegaard o salto da fé exigia o absurdo de superar inclusive a ética, a
fim de entregar-se a Deus; é neste salto na fé, que superaríamos também a morte
como fonte de desespero e nos encontraríamos com o “eu” que surge do embate entre finito e infinito; com o “eu” que
surge no descentramento promovido pelo amor, superando o ego e, no fim, no
descentramento promovido pela morte, que jamais supera uma vida que foi entrega
e cuidado. Por Eduardo Rodrigues (aluno).
[1] KIERKEGAARD, S. O Desespero Humano. Martin Claret: São Paulo, 2001.
[2]
Paráfrase do que Heidegger escreveu em “O Caminho do Campo”. Cf. HEIDEGGER, M. O
caminho do Campo. (trad. de Ernildo Stein e José Geraldo Nogueira
Moutinho), in “Cavalo Azul”, n. 4, São Paulo, s/d, p. 3.
[3] MOLTMANN, J. No fim, o início: breve tratado sobre a
esperança. Edições Loyola: São Paulo, Brasil, 2007.
Crédito da imagem: http://www.suaescolha.com/wp-content/uploads/2011/02/reencarnacao.jpg
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