sábado, 25 de fevereiro de 2012

Sobre a morte e a vida...



Gosto do filósofo dinamarquês Kierkegaard. Em sua obra “O Desespero Humano”[1], o filósofo diz que a morte não é letal para o cristão. Há uma doença mortal que o cristianismo descobriu, uma miséria que é mais funesta do que todas as outras doenças: o desespero. Há muita gente, muitos cristãos, no entanto, desesperados, ainda, por conta da morte. E por certo. Ninguém sabe morrer, pois essa não é uma daquelas experiências que podemos fazer e acrescer ao nosso “know how”. Não somos também educados para a morte. Estamos, portanto, irremediavelmente entregues ao desconhecido. O que não é de todo desfavorável, porque isso prova que não podemos lançar as rédeas de nossa vontade-de-poder no futuro, sempre incerto... Aqui aparece aquela sensação de insegurança: vivemos o presente que se dá e nos escapa, tornando-se passado, enquanto o futuro vai se descortinando, exigindo de nós espontaneidade, para lidar com a imprevisibilidade da vida. Se assim é, não é verdade que a morte é a consciência de nossa ruína apenas, mas é a condição de devolvermos nossa vida à criatividade. É só assim que podemos, a meu ver, desposar a vida: despossuindo-a. A nossa “autoridade” sobre a vida, seria da ordem da atenção a ela (o que requer cuidado) e não do domínio, portanto.
A reflexão bioética se encontra também com a morte, porque todo ser vivente está destinado a ela. Dá de pensar a nossa fuga da morte. Ao passo que em nós há uma pulsão para ela (Freud); e ao mesmo tempo em que somos apresentados diante dela (pelos jornais, pela mídia eletrônica), somos acompanhados pelo receio de ver todos os nossos sonhos e projetos fracassados no fim que ela representa.
Gostaríamos de ter felicidade sem dor e de jamais perder quem amamos, pois também temos dificuldade para o luto. Numa sociedade como a nossa, desenvolvida biotecnologicamente, ainda não conseguimos dirimir a dor o quanto poderíamos e nem tampouco, fugir da morte. Além disso, o fato de sermos também uma cultura narcisista, empenhada na beleza, no auge do corpo, faz-nos temer o declínio de todas as nossas funções: as biológicas e produtivas. Ora, isso é um presente para o mercado do sexo, por um lado, porque ele pode se valer da tensão gerada pelo desespero e fazer a sexualidade funcionar como válvula de escape, explorando os desejos e os medos do homem. E desejos e medos andam tão próximos, quanto a morte e a sexualidade.
É preciso saber perder. Nesse sentido, é uma arte morrer e perder aqueles que amamos. Primeiramente, quanto a nós mesmos: é uma arte morrer, pois com a morte aprendemos qual o segredo final da vida (O silêncio e a solidão da tumba? O sentido de eternidade?). É uma arte, porque morrer bem consiste exatamente em não procurar a morte, e sim em lutar pela vida; em amar tudo o que a vida pode ser de bom e prazeroso; e isso, mesmo diante da doença, que rompe a unidade entre corpo e cogito, mas não quebranta a dignidade. Uma vida que deitou raízes na terra, abriu-se na copa para o céu[2]. Agora, quanto aos outros: enlutar-se é algo possível só para quem ama. Mas o outro a quem eu amo é sujeito, é dom, não propriedade minha. Na morte daqueles que amamos, aprendemos uma dinâmica excruciante do amor: a ausência. O amor é feito também disso: de nãos, de lacunas, de despedidas, de saudades, de espaços sempre reservados a quem amamos. A morte também é não, é lacuna, é despedida, é saudade... Morte e amor tem algo em comum, então: se quando amamos, experimentamos a ex-centricidade de nosso ego, na morte igualmente.
A ausência é uma forma de presença e é preciso aprender a suportar o peso do desamparo, contra toda ilusão.  Com a ausência do outro aprendemos que a vida é graça e a que a presença dos que estão a nossa volta também. Por isso uma vida atenciosa ao outro é indispensável, pois só “a alegria da feliz experiência do amor, através da gratidão, torna-se uma proteção no luto. No momento da perda, a gratidão mantém a comunhão com as pessoas queridas, deixando livre a pessoa morta.”[3]
Parece óbvio para mim uma coisa: somos seres-para-além-da-morte. É uma questão de fé. Mas não de uma fé segura. Trata-se de uma fé sobressaltada pela dúvida... E se para Kierkegaard o salto da fé exigia o absurdo de superar inclusive a ética, a fim de entregar-se a Deus; é neste salto na fé, que superaríamos também a morte como fonte de desespero e nos encontraríamos com o “eu” que surge do embate entre finito e infinito; com o “eu” que surge no descentramento promovido pelo amor, superando o ego e, no fim, no descentramento promovido pela morte, que jamais supera uma vida que foi entrega e cuidado. Por Eduardo Rodrigues (aluno).


[1] KIERKEGAARD, S. O Desespero Humano. Martin Claret: São Paulo, 2001.
[2] Paráfrase do que Heidegger escreveu em “O Caminho do Campo”. Cf. HEIDEGGER, M. O caminho do Campo. (trad. de Ernildo Stein e José Geraldo Nogueira Moutinho), in “Cavalo Azul”, n. 4, São Paulo, s/d, p. 3.
[3] MOLTMANN, J. No fim, o início: breve tratado sobre a esperança. Edições Loyola: São Paulo, Brasil, 2007.



Crédito da imagem: http://www.suaescolha.com/wp-content/uploads/2011/02/reencarnacao.jpg

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