quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Apontamentos sobre a lei natural


Estava relendo meus apontamentos [1] de ética fundamental e redescobri alguns elementos importantes sobre a lei natural. Quando o professor Nilo Ribeiro traçava a ética cristã em perspectiva diacrônica, nós passamos por São João Crisóstomo. Então, vimos que a lei natural corresponde a agirmos por nós mesmos, por aquilo que é mais natural em nós. Deus depositou em nós a razão prática, do que se conclui que Deus não dita a nossa ação, mas nos dá razão para agir. A lei natural em São João Crisóstomo, tanto como a consciência moral, são apropriações da cultura greco-romana. A consciência moral seria a nossa capacidade de conhecer dada situação e/ou objetos, saber que sabemos e decidir sobre aquilo que sabemos. Mas já aqui, nos confrontamos com um limite da lei natural: é a razão que limita as paixões, pois pela consciência moral se dava a reflexividade do sujeito que se descobre como instância última do seu agir. A consciência moral seria, portanto, o lugar em que a gente decide pelo bem ou pelo mal. 

Avançando historicamente, chegamos a Sto. Tomás. Com ele, a ética vai se deslocando de uma perspectiva simbólica para uma ética sistemática da Summa. Deus, nós pensamos enquanto princípio e fim em si mesmo, para Tomás. Sendo Deus o sumo bem, o homem age por ele mesmo (enquanto tal) e pode se aproximar desse Deus, por essa ação. O Bem perfeito coloca no homem a fé, a esperança e a caridade, de forma que a tendência natural do homem ao bem tem nome. O fim do agir humano, enfim, é o bem e o homem deve ponderar qual bem é mais importante. Tomás acaba desenvolvendo aqui uma consciência operativa do agir. Além disso, identifica a lei moral natural em função da concreção dos bens particulares, dando a ela o papel de ponderar os bens. 

É a partir do século XIII que começa a se reagir ao intelectualismo e ao racionalismo da ética aristotélica predominantes na ética tomasiana. Os reacionistas (movimento do franciscanismo) não valorizarão tanto a razão, mas a vontade. A vontade de poder precederá a Razão como poder, isso porque a vontade pode querer ou não querer o que sabe que é bom. Como o acento é deslocado para a vontade individual, ganha força a ideia de livre-arbítrio, independentemente do horizonte do agir (desaparece a ideia do bem ou sumo bem). Essa inversão será coroada com aquilo que ficamos conhecendo como nó teológico. Os nominalistas, consequentemente, postularão que: 1) não é possível conhecer a Deus, porque ele não é da ordem do empírico, do concreto, da experiência do sensível e que 2) Deus é conhecido intuitivamente. 

Se o ser humano é, segundo os nominalistas, vontade livre, Deus é vontade livre absoluta, mas diferentemente do homem, nunca erra, não se engana, não se prende à experiência. O homem que não pode conhecer a Deus, no entanto, contraditoriamente, pode seguir a vontade de Deus, pois esse mesmo Deus prescreveu tudo na natureza humana e está tudo prescrito também nas Escrituras. Deus vira legislador de minha ação moral, desse modo passamos a uma ética que é heterônoma. A lei natural, a razão natural que mesmo marcadas por uma tônica racionalista, ainda fazia do homem o agente moral, agora passa a ser entendida como prescrição de Deus. O sexo, por exemplo, é para a procriação, isso é da natureza humana. Usar do sexo, fora desse sentido é contra a natureza e, portanto, pecado. É aqui que se encontra o risco do fundamentalismo moral. 

O paradoxo está entre querer poder e não querer (vontade de poder: transformar pela força da vontade) e obedecer ao que ele prescreveu (fé). Os atos morais são entendidos isoladamente enfatizando a retidão, a correção, a certeza e a verdade da execução do ato em detrimento da bondade do ato moral. Não importa a bondade do ato moral, o télos, o fim do sujeito agente. 

O heteronomismo teológico redunda, portanto, num atomismo moral e aquele nó teológico vai perdurar por muito tempo. A moral kantiana mesma, bem mais tarde, parece beber do nominalismo. Ora, se Deus e sua Vontade não podem ser conhecidos (o numênico), então, convém não nos ocuparmos dele, mas do fenomênico, da nossa ação, do nosso dever. É claro que não devemos esquecer que em Kant, eu ajo levado por minha liberdade, o que supera o heteronomismo na autonomia, mas não escapa de um racionalismo. 

Todavia, os pronunciamentos da Igreja sobre a lei natural não são levianos, bem como os pronunciamentos a respeito da dignidade humana. A Igreja vê o ser humano como fim, nunca como meio. Mas é verdade que ainda permanece o risco de fazer de Deus o legislador sobre o agir, bem como perder de vista a importância do agir moral orientado pelo télos. O que importa é a bondade da ação moral, uma moral de atitudes e não de atos isolados, que redundam na casuística. A lei natural não é uma bobagem, de fato, mas ainda permanece muito racional, esquecendo-se de conjugar, ao menos aparentemente, que o homem não é só razão. Por Eduardo Rodrigues (aluno).

Créditos da figura: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgWJ_P40jGzUh3eX4oeY2U7mpWsOn3d0zGvoS6VJgPK2Cpi5zaGP3wbZIkYvDEKWcHtCHYn0Zx3l5sjwkuD2-fy9gItbu-P-NKFJl1xLTiQZZsay4yxH889blxJ6v3K0S4ewfn6PiRlAsRS/s1600/99934273.jpg


[1] A partir das aulas de Nilo Ribeiro, professor de Ética teológica fundamental (2010/2) e das aulas de Germano Cord Neto, professor de Bioética (2012/1)

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