sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Encarnação e hermenêutica

No meu primeiro post, lembrava que todo saber e toda interpretação (hermenêutica) acontece necessariamente em corpos humanos sexuados. Esse fato de encarnação tem pelo menos duas consequências epistemológicas (sem deixar de ser éticas e políticas) que a bioética deve levar em conta. Ambas as consequências são desenvolvidas (embora não com conexão explícita à bioética) pela psicanalista feminista, Luce Irigaray, no seu livro This Sex Which Is Not One (Esse sexo que nao é um). 

Irigaray argumenta que (1) a sexualidade, intimamente vinculada ao corpo (embora não determinada por ele), constitui uma dimensão importante da interpretação, e que (2) o « olhar » privilegiado na tradição ocidental de interpretação tem sido o olhar masculino. Esse olhar masculino é aquele que procura “captar” (dominar) seu objeto, privilegiando a medição e a comparação para eliminar toda diferença, reduzindo o outro a si. É o olhar falocrático do princípio da não contradição, o olhar da metafísica e da ciência, dos projetos lineares com alvos de singularidade. 

A interpretação feminina (aquela que tem como fonte a sexualidade da mulher, embora pode ser encarnada por qualquer pessoa, assim como tem muitas mulheres que interpretam com um abordagem masculino), tão reprimida na nossa tradição, tem outra lógica – outro jeito de perceber – que pode nos enriquecer. Em vez de privilegiar a “potência produtiva” em termos de formas com volume, a interpretação feminina (segundo Irigaray) percebe em termos de “prazer”, e o prazer feminino tem a ver com a “proximidade” de superfícies, onde a distinção de identidades (e por tanto de unidades de propriedade particular, e dos seus donos) é difusa. Não precisa escolher entre o prazer do clitóris e o da vagina; exatamente a simultaneidade das carícias provoca um prazer sem comparação e sem medida unitária. 

Irigaray luta por um mundo no qual seja possível a relação mútua dos sexos (e das epistemologias sexualmente condicionadas – que não precisam ser limitadas a um binário, mas podem ser múltiplas) em condições de equidade e liberdade. A bioética, tanto por causa da sua preocupação com o sentido localizado no corpo humano como por causa da complexidade das questões que aborda, é um campo que poderia aproveitar muito de se abrir a uma tal interação epistemológica. Num sentido, significaria uma aplicação da bioética ao seu próprio fundamento. (Emilio – aluno).

Crédito da foto: http://27.media.tumblr.com/tumblr_l0s7brcpfo1qbo7nso1_500.jpg

Um comentário:

  1. Penso que de fato não é possível uma compreensão do ser humano, sem um ou vários pontos de vista do "olhar feminino", haja vista o que temos de estudiosos do sexo masculino favoreçam apenas a um olhar unilateral que, quer queira ou não, possuem tendência natural para aviliar suas conjecturas diante de sua percepção masculina.
    A "relação mútua dos sexos", partindo de um olhar feminino, promove então consideravelmente uma hermenêutica de horizontes mais amplos dentro inclusive da bioética.
    Irigaray, parece-nos, tem muito para contribuir com essa "interpretação feminina" e Emílio ao apresentar-nos sua visão, promove esse outro olhar que pode não tanto e mais além, quanto e mais, estar de "maõs juntas" para uma bioética mais universal que supere a distinção de sexo.
    valeu!

    Hugo Galvão

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