sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Uma bioética da libertação (Parte III)



De qualquer maneira, os aspectos referentes à vida em sua totalidade tanto, na libertação dela, quanto na primazia da mesma sobre tudo, se fazem presentes nas duas tradições.  Na tradição dos judeus e na tradição dos cristãos. Por isso, os cristãos até reconhecem a sua tradição como judeu-cristã, acentuando que o inefável se avizinha ao gênero humano e como se não bastasse acaba se tornando um dos homens (cf. Ex, 33,11; Jo15-14-15, Br 3,38 1-18).
Assim, com os recursos que são próprios da humanidade, ambas as tradições[1] no uso natural de seus meios tentam expressar experiências sobrenaturais. Ou seja, experiência que rompem com categorias de espaço circunscrito e do tempo matematizador. Experiências e vivências que podemos nomear de atemporais. Essa transmissão se deu e se dá com o uso da linguagem. Dialogicamente por metáforas e por contos, por mitos e por histórias que querem dizer mais do que dizem. (cf.Gn1, 26). Nesta construção de narrativas da experiência humana a liberdade humana segue para a plenitude do devir[2]. E a vida revela o profundo sentido que tem a partir da “ingênua” experiência do povo simples.
Os antigos, na base da observação espontânea da natureza, já haviam percebido o dinamismo da vida e da natureza e, por isso, atualizavam seus códigos de normas às diversas circunstâncias existentes. Aos poucos também, perceberam o ordenamento complexo e hierárquico, pelo o qual as partículas elementares eram ordenadas constituindo compostos físicos formando assim os viventes. Esta observação antiga revela a capacidade de percepção humana desde a antiguidade. Porém, não só a capacidade de percepção do homem, mas a razão humana em seu funcionamento, a reflexão problematizando o cosmo, o mundo e a vida na sociedade. Assim, hoje no século XXI, podemos dizer que: “Não há nada de novo debaixo do sol”. (Ecl 1,9).
A novidade do século XXI são os modos, os meios que são utilizados para se fazer as observações e problematizar a vida, o cosmo, as relações humanas. As motivações e finalidades são outras que revela certo utilitarismo e pretensão, individualismos nas relações. As vidas existentes, muitas vezes, são submetidas a rigores metódicos tanto religiosos quanto científicos, e logo se instaura o endeusamento científico e a ditadura religiosa. Isso se mostra mais transparente a partir de uma analise fenomenológica de discursos e posturas no que tange ao tratamento da vida, nas relações entre religiões e seus membros e no cuidado da humanidade com o mundo.
Hoje, fala-se e discursa-se muito sobre pluralidade de culturas, sobre diversidades de opiniões e variedades de ciências e, portanto, sobre os inúmeros modos de abordar a realidade contemporânea. Assim a partir desta complexidade contemporânea se percebe um crescimento de fator prepondera a cada instante. O fator da incredulidade e desrespeito da vida e das relações.  Muitos não mais acreditam em um Deus da vida e um Deus libertador que é relação por excelência e sim em deuses diferentes.
O deus de motivações particulares de políticos e governantes. O deus da utilidade própria de modelos de pesquisas que, em busca de descoberta, relativiza a vida e o ecossistema. O deus da desigualdade social e da má distribuição rendas entre as classes sociais que têm raízes na pretensão de uma minoria mundial. O deus que cria multidões de excluídos em benefício de uma minoria detentora do poder intelectual e material financeiro. Um deus possessivo de descobertas científicas que deveriam emancipar o homem e suas relações. A deusa razão que, às vezes, pensa açambarcar a totalidade da vida e do mundo. O deus moralista que pensa, ilusoriamente, conseguir a todo instante  legiferar as ações humana prescrevendo normas que sirvam como regulamento para todas vidas de diversos povos, raças, etnias e opções.  
Todas essas imagens instauram no mundo contemporâneo uma única figura, a imagem de um deus opressor. Por isso, urge uma ética ou, melhor uma bioética da libertação. Libertação de vícios e tendências que coloca a todos em um risco de um colapso. Continua... (Vagner Moreira da Silva)


[1] Ao falar de tradição aqui sempre teremos como referência a tradição judia ou a cristã ou, ainda, judeu-cristã. 
[2] Cf. BALTHASAR, Hans Urs Von. O coração do mundo. Livraria Tavares: Porto, 1959, p. 15.

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